quarta-feira, 27 de abril de 2011



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suspensa teia do tempo
se tece no interior do pensamento
e se se pensa o curso do tempo
(sua luta latente) mais se ateia
o fogo do pensamento
e se consome o som do tempo



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C.P.
20-7-71

Desenho: retrato de Manoel Tavares Rodrigues-Leal. Com um casual efeito digital.
Por Luís de Barreiros Tavares (1988)

domingo, 3 de abril de 2011

Dois textos de Elsa Rodrigues dos Santos sobre poemas de Manoel Tavares Rodrigues-Leal

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Dois textos de Elsa Rodrigues dos Santos sobre poemas de Manoel Tavares Rodrigues-Leal com o pseudónimo: "Manoel Ferreyra da Motta Cardôzo."

1º texto

Sobre A Noção da Inocência



Do seu primeiro livro, A Duração da Eternidade, eu dizia: «Numa escrita indócil, viril, entre o cunho clássico pela virtude da cultura, da qualidade e da sabedoria e da marca do modernismo na criatividade de uma nova gramática, Motta Cardôzo oculta as cicatrizes e os dias felizes, na convicção da palavra poética.»
E terminava: «Assim o acreditamos, pela publicação deste seu primeiro livro de poesia, belo nas suas metáforas e representações, que desejamos não ser um acto isolado e efémero, mas retomando em outros Outonos suaves e marcantes, enriquecendo as belas letras portuguesas».
Com a Noção da Inocência confirmamos a qualidade da escrita poética, projectada não só neste terceiro livro, como num quarto já muito próximo de nos chegar às mãos.
E se no primeiro livro o Poeta se confrontava com o ofício da escrita, como um acto de alegria e de dor, e ainda como o binómio eternidade/efemeridade, neste segundo livro, o sujeito poético remonta à idade da inocência, à beleza quase perfeita dos corpos e à descoberta do amor.

a infância ainda ecoa. ainda eclode.
tão íntima. tão lúcida.
atravessa os dias. como uma seta.
que inflige ternura.

X

a exuberância crucial do desejo. ocorre. essa desmesura.
essa distância dos corpos. e das colinas. e sua errância. e efémera.
irrestrita. mas triste. como descrevê-las. velas e loucura.
e toda a adolescência. magoada. que não deslumbra.
mas ainda navega. navio esvelto. que não foge do fogo.
nem exorbita da penumbra.

A idade da inocência cumpre-se como um tempo de expectativa, de curiosidade, como um fruto ainda verde, mas promissor de um outro tempo em que Eros e Apolo se unem, insinuando uma maturidade sensual.

acordo para o verão. vulnerável.
inaudível.
que cai como uma benção. ou um anátema.
acordo para o teu corpo. que é um corcel. ágil e alegre.
moreno. como a rosa da tarde. que declina. e se rasga. cruel.
e que. de um prazer íngreme. se alague.

O sujeito poético transporta, porém, o germe da dúvida, da perenidade do amor, da dor que o fim implica e di-lo nos versos:

ah ter eu a leveza de haste.
de uma primavera remota. por que tu te enfeitiçaste.
a noção. incólume. do meu íntimo desastre.

Confrontam-se agora dois tempos: presente/ passado transfigurados em realidade/ memória, em que nos dias longínquos da juventude os corpos eram belos, o amor, emoção e prazer. No presente, a vida flui para um destino irremediável, rio sem regresso.

jamais teu corpo florirá. como outrora
floriu. jamais jorrará a seiva ardente.
que jorrava. nos dias auspiciosos e felizes

agora teu corpo cumpre o seu destino. inexorável
(...)
e inocente. que é a morte. perene. obscena. irrespirável.

Visão pessimista e dolorosa só colmatada pela recordação da mãe, da casa, porto seguro, sem enganos e sem traições, ultrapassando a efemeridade da vida e o «olvido vil da morte»

a infância perfaz-se em ti. ó
mãe mansa.
ó casa. ilesa.
onde vivi. e o ouro do gesto floria.
sem engano.
sem a dubiez das
noites.
e o gesto floria. exacto.
e nunca mais se extinguiria.
ó mãe. mansa e imensa.
cujo rosto jamais se apartará de mim. e que eu ainda vislumbro
rosto incólume. que eu sempre invocarei.
contra o olvido vil da morte.

Reiterando por outras palavras o que disse anteriormente, a poesia de Motta Cardôzo é trabalhada no ouro da palavra, numa escrita adulta e de qualidade, em que o erotismo do gesto se configura em imagens de uma elevada beleza e finura como só um poeta maduro e realizado o pode fazer. Por isso, é urgente que a sua poesia seja enquadrada na nossa melhor literatura.


Elsa Rodrigues dos Santos


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2º texto


Este texto da autoria de Elsa Rodrigues dos Santos foi lido numa emissão radiofónica do programa Fantástica Aventura da RDP Internacional, coordenado por Teresa Morgado . É agora registado em video. Foi publicado no boletim literário da SLP.
A Doutora Elsa Rodrigues dos Santos foi professora do Ensino Secundário, no Instituto de Ciências Educativas e na Universidade Lusófona.
Tem-se dedicado ao estudo da literatura portuguesa e das literaturas africanas de língua portuguesa.
É Presidente da Sociedade da Língua Portuguesa (SLP).








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Três epígrafes, duas de Rimbaud e uma de Ricardo Reis abrem o livro sob o signo da descrença da vida e da existência de liberdade.
«Merde à Dieu» diz Rimbaud, «Porque só na ilusão da liberdade, a liberdade existe…» acentua Ricardo Reis numa das suas Odes. Assim, logo à partida as epígrafes apontam-nos para uma poesia com um certo cepticismo e mágoa.
O primeiro poema é uma reflexão sobre o ofício da escrita e o autor fala-nos de «loucura», de «uma frustre maré interior», «o inexorável rigor» e «depois a remota eternidade de um corpo».
Jogando com o conceito de «literatura», que é ofício eterno, mas também «leitura e ócio», o poeta termina ironicamente rimando com a palavra «literadura», porque a escrita, se é algo de eterno, implica também sofrimento.
No poema II, o poeta, na sequência do primeiro, afirma. «e não dura o dom». Confronta-se, então, o sentido de eternidade com o de efemeridade, isto é, eternidade, na qual o poeta acredita e efemeridade que constata. E aí reside a dor do sujeito poético, entre o prazer fugidio das palavras e o projecto de escrita para a eternidade que se confundem com o vazio dos dias entre «a vã cobiça de um corpo», «prazer efémero», o desejo de amor e «a morte suprema» desse mesmo amor, dessa mesma vida.
Fica apenas a ilusão de que a sua escrita permanecerá eternamente ( «luar de letras consentidas» (…) «assim as guardo. cioso» «até à circulação da eternidade. Suponho eu.»)
No poema III, o «eu» surge em forma de Outono que «vem todos os anos. outonos suaves. como a mãe gostava. eternos e não duram muito.»
«Outono», não apenas como símbolo do declinar das estações e da existência, mas como algo de doce, de sensual, de recordação de um amor que «morreu há muito e é eterno e outono talvez.» Eterno porque volta sempre, ainda que passageiro.
Institui-se com persistência o binómio eternidade/efemeridade na escrita e sobretudo no amor porque «até a eternidade morre vilmente» (V).
«Cristo morreu como se fosse eterno/ como se fosse manso rio de um continente desconhecido» (VI).
Eros e Tanatos se degladiam entre o ser e o estar, entre a essência e a vivência.
Erotismo e vida, erotismo e morte (oh vã comédia da vida) fundem-se na alma do poeta através da arte das palavras.
Numa escrita indócil, viril, entre o cunho clássico pela virtude da cultura, da qualidade e da sabedoria e a marca do modernismo na criatividade de uma nova gramática, Motta Cardôzo oculta as cicatrizes e os dias felizes, na convicção da posteridade da palavra poética.
Assim o acreditamos, pela publicação deste seu primeiro livro de poesia, belo nas suas metáforas e representações, que desejamos não ser um acto isolado e efémero, mas retornando em outros Outonos suaves e marcantes, enriquecendo as belas letras portuguesas.

Elsa Rodrigues dos Santos

Este texto encontra-se publicado no site de recensões da Sociedade da Língua Portuguesa (SLP)



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Registado em 2/4/2011

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