domingo, 11 de dezembro de 2011

Algumas considerações sobre Manoel Tavares Rodrigues-Leal






O gesto surge e ergue-se
Manobra ondulação de ombro braço e mão


Manuel Tavares Rodrigues-Leal
23-1-71

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Algumas considerações.

"A Poesia não tem nome. À sua imagem, o poeta é o homem incógnito. Como poderia ter um nome se a Poesia é o homem à procura dos seu nome?"

Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Porto, ed. Inova Porto, 1974. (primeira edição)

"Conheces o nome que te deram,
não conheces o nome que tens" (Livro das evidências)

Inscrição de abertura de Todos os Nomes de José Saramago
"Perguntou-se como iria viver a sua vida daqui para diante, se voltaria às suas colecções de gente famosa, durante rápidos segundos apreciou a imagem de si próprio, sentado à mesa ao serão, a recortar notícias e fotografias com uma pilha de jornais e revistas ao lado, a intuir uma celebridade que despontava ou que pelo contrário fenecia, uma vez ou outra, no passado, tivera a visão antecipada do destino de certas pessoas que depois se tornaram importantes, uma vez ou outra tinha sido o primeiro a suspeitar que os louros deste homem ou daquela mulher iam começar a murchar, a encarquilhar-se, a cair em pó, Tudo acaba no lixo, disse o Sr. José, sem perceber naquele momento se estava a pensar nas famas perdidas ou na sua colecção."

Todos os Nomes (José Saramago)

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What did your face look like before your parents were born? 

Zen koan






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Tinha dezoito anos (em 1981) quando conheci pessoalmente Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Manoel - Lisboa 1941). A ideia de construir este blogue ocorreu em 2011. Trinta anos depois. Tomei contacto com a sua poesia no primeiro dia em que o conheci. Éramos vizinhos, se vizinho se pode chamar a uma pessoa que mora a cerca de trinta metros da outra. Já o conhecia de vista há vários anos. Nas possibilidades que os meus dezoito anos me permitiam, pareceu-me logo que havia qualquer coisa de pelo menos interessante na sua obra. Não se trata de um dado ou nome, quase, nem tão-pouco adquirido. E esta ideia entusiasma-me... Geralmente é o que acontece quando falamos ou escrevemos sobre algum autor que, se não está já lançado ou na ribalta, pelo menos está na rampa de lançamento editorial. Não é o que acontece ainda com este poeta. Chamaria àqueles casos tão banalizados - dados e nomes quase ou já adquiridos -, e criando uma nova expressão, mas lembrando aquela extraordinária de Marcel Duchamp (ready-made): ready-made-name. Uma espécie de coisa, objecto, dado ou nome já feito, já terminado. No caso da expressão ready-made-name, o 'nome' toma um lugar prevalecente como garantido e, por isso, já feito, sendo consequentemente, muitas das vezes, o que mais importa. Ou seja, às tantas, o nome acaba por ser o mais importante, impondo-se como imperativo antes de qualquer outra coisa. É que o "dado e adquirido" incorre frequentemente - não quer dizer que seja sempre - num 'antes' ( dado e adquirido) que é paradoxalmente um 'depois' ( dado e adquirido). 'Antes', numa espécie de apriori; 'depois' porque finalizado, terminado, e isso vem no fim, a saber, depois.
Todavia, o que me parece haver é uma insuficiente compreensão destes mecanismos da linguagem que funcionam muito bem, de um certo modo inconscientemente, nas engrenagens dos mercados, das publicidades e, acima de tudo, da visibilidade pela visibilidade que trai de uma certa maneira alguma cegueira de que se não dá por isso. Quer dizer que esta modalidade de trabalhar com o 'nome' se cola enquanto garantia à partida numa lógica de mercado e de publicitação.
Trata-se também, segundo me parece, de uma questão metonímica. Mas não é este o lugar para analisar esta questão.
Enfim, vivemos numa profusão vertiginosa e paradoxalmente futura de ready-made-names! Esta estranha pletora... Evidentemente que não é sempre assim. E mesmo nos casos, nos nomes em que isto acontece, não é obrigatório que sempre assim seja. Mais ou menos nestes termos, no Fedro de Platão, conta-se que os antigos (para a época) davam mais atenção ao que dizia uma pedra ou um carvalho do que a alguém com um nome importante vindo de uma grande cidade. Mas citemos: "Sócrates - Dizem, meu caro amigo, que os primeiros oráculos no templo de Zeus, em Dodona, foram feitos por um carvalho! É evidente que os homens daquele tempo não eram tão sábios como os da nossa geração e, como eram ingénuos, o que um carvalho ou um rochedo dissessem tornava-se muito importante, conquanto lhes parecesse verídico! Mas para ti talvez interesse saber quem disse determinada coisa e de que terra é natural, pois não te basta verificar se essa coisa é verdadeira ou falsa!" (Platão, Fedro, 175 c; tradução: Pinharanda Gomes). Nestes contextos da poesia ponhamos de lado a questão do verdadeiro e do falso. Talvez fosse interessante fazer um dia um estudo sobre a questão petulância do nome. Mas não é este o lugar nem o momento para tal análise.
"Hoje a táctica repressiva baseia-se precisamente no contrário. Nada de proibir. Agora trata-se de fomentar. O próprio excesso, a proliferação e a super-abundância ocupam-se de sufocar ou desvirtuar a voz dos melhores, dos que poderiam ser os autênticos guias da sociedade. Quanta estupidez nos invade em nome da independência e até da nobre pureza da juventude! Quantas banalidades são condecoradas e aplaudidas fazendo-as passar até por rebeldia! Quantas confusões se criam misturando o autêntico criador com tendências que se dizem novas ou que, demagogicamente, se diz serem mais populares, mas que não são senão frivolidades e disparates inventados pelas ordens estabelecidas! (Antoni Tàpies, A Prática da Arte, Trad. Artur Guerra, Lisboa, Cotovia, 2002). Tàpies não cita nenhum nome. Inteligentemente, ele apela para a atenção que deve ser tomada por qualquer um para o que se pode manifestar nestas circunstâncias, seja para quem for (1).
Eduardo Lourenço escreve a propósito de Fernando Pessoa: “ Pessoa conhece uma «glória» verdadeiramente universal. Devemos exultar diante de um fenómeno que toca a idolatria ou deplorá-lo? Muitos reflexos desta glória não nos aproximam nem da obra, nem da figura (em suma, humana) do poeta da Ode à Noite” (Fernando Pessoa, Rei da Nossa Baviera, Lisboa, Gradiva, 2008, p. 46).
Um autor tem oscilações (obras melhores do que outras). Bem como os critérios críticos também variam relativamente a um mesmo livro ou a um mesmo poema, p.ex. Um crítico pode fazer uma análise mais favorável e outro menos. Isto não é novidade.
Além disso, gostaria muito de ver certos críticos e estudiosos de certos autores tidos como malditos e loucos lidarem com eles directamente. A menos que tivessem a capacidade de transfiguração que lhes garantisse uma certa loucura e caos dispondo assim da possibilidade de suportar certos temperamentos que muitas das vezes caracterizam uma certa genialidade a par da obra. Fugiriam a sete pés, sem dúvida nenhuma. Gostariam de falar e escrever sobre eles à distância do espaço e ainda mais do tempo. Evidentemente que alguns são capazes.
Normalmente é muito fácil falar, escrever e pensar sobre o que já foi. Não por acaso Duchamp se retirou para um certo silêncio durante muito tempo.
Eis o desafio a que me propus, prestando aqui algum tributo, tanto quanto possível, à sua obra e à pessoa, uma vez que somos amigos. Sendo um pouco suspeito pelo motivo da amizade, deixo assim alguns registos.
Sou testemunho de uma ínfima parte de um conjunto de cerca de 100 cadernos inéditos de prosa-poética e fundamentalmente de poesia (alguns deles com 100 poemas), só conhecendo uns 3%, se tanto.
Parafraseando o enorme e ímpar poeta que foi Fernando Pessoa, se é bom ou não "sei lá, pouco me importa."
Não se trata aqui de alguém que descobre alguém. Quem sou eu para o ter descoberto se nos separam mais de vinte anos de idade. Andava eu na creche e já ele escrevia poemas. Quem é ele para me descobrir se a ideia de construir este blogue partiu de mim. Para mais, também faço as minhas coisas à parte estas. Mas as coisas não se resumem a somatórios. Aliás, como todos nós em relação uns aos outros, fazemos sempre outras coisas que os outros não fazem, cada um a seu modo na sua dignidade. Neste e noutros casos, as pessoas descobrem-se um pouco mutuamente nos trabalhos que partilham. Quando muito dão-se também a descobrir, dão os outros a descobrir-se, dão-se a descobrir pelos outros. Enfim, dão-se a descobrir uns aos outros através das coisas que todos fazem durante os trabalhos e os dias, para empregar as palavras de Hesíodo - sabendo que há sempre algo mais a fazer e por descobrir.
Não fui eu quem previamente trouxe a sua poesia a um leve aparecimento público. Antes foi a sua poesia que me fez trazê-la a este primeiro limiar. Além disso foi o Manoel quem reatou contacto comigo há uns 5 anos após um interregno de 8, e um dos motivos foi o de ele ir para a frente com a divulgação da sua obra (publicações de edição de autor) contando com o meu apoio na medida das minhas possibilidades.
Enfim, e lembrando uma expressão usada por um antigo meu professor de Filosofia, Costa Freitas (Manuel Barbosa da Costa Freitas - Frade Franciscano que de vez em quando nos lia ou nos pedia para ler o conto de Alphonse Daudet: A Mula do Papa), num tom algumas vezes espirituoso e muito ao seu jeito, e não só: "ninguém substitui ninguém."
Entre outros feed-backs, menciono o de Maria João Seixas relativamente a um livro seu ( "Eis o livro de um grande poeta"), de José Gil ao ler um poema ("é belíssimo") e de Eduardo Lourenço nas suas primeiras impressões ao ler alguns poemas ("tem inegáveis qualidades poéticas").
Este blogue foi inicialmente aberto como espaço provisório com poucos poemas para enviar a algumas pessoas na passagem de ano 2010/2011. Em Janeiro de 2011 decidiu-se construir um blogue permanente, partindo desse dito espaço provisório, onde se foram colocando mais dados acerca da obra do Manoel. 'Manoel', como o próprio diz, é a matriz de todos os seus pseudónimos, sendo que simultaneamente o seu nome próprio é 'Manoel'. Esta ideia ocorreu e decidiu-se fazer este trabalho em conjunto. Este poeta tem alguns livros publicados (quatro, e dois com posfácios escritos por mim) em edição de autor desde 2007. Sairá em de 2012 um outro livro. Publicou alguns poemas no Boletim da SLP (Sociedade da Língua Portuguesa), havendo também no site desta instituição uma recensão sobre um livro seu pela Dra. Elsa Rodrigues dos Santos, bem como um texto da minha autoria sobre os seus três livros.
Manoel desconhece o modo de trabalho com a Net. Mais uma razão para que esta seja o medium principal para este tipo de divulgação, e para que futuramente se possa dizer e pensar o que bem se entenda sobre a sua obra - coisa que não me dirá minimamente respeito - antes que o resto do espólio vá por água abaixo.
Para levar a cabo este projecto foi preciso da minha parte um grande poder de encaixe com a loucura, inclusive a minha, correspondentemente, também, claro. Eis pois o resultado de um ano de registos vídeo e escritos.

Sobre Tàpies veja-se no nosso blogue:

Luís de Barreiros Tavares
12/2011

Alguns nomes que contribuiram de algum modo para a feitura deste blogue. Apoio técnico e outros de João Luis Alves, António Mouzinho, Elsa Rodrigues dos Santos, Raquel Tavares, Paulo Costa Santos, Luís Sal, Alexandra Gomes, Nuno Augusto, Ricardo Santos, Rita Paz, Brahim, José Pinheiro Neves, Sérgio Lopes, Bianca Pratas...
lbtavaresster@gmail.com

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Dois sonetos de Camilo Pessanha lidos por Manoel:


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Manoel Tavares Rodrigues-Leal usou vários pseudónimos. Assinou livros com os seguintes:

Manoel Ferreyra da Motta Cardôzo - A Duração da Eternidade (2007); A Imperfeição da Felicidade (2007); A Noção da Inocência (2008).
Manoel da Cunha e Mello - Fidelidade de um Fauno (2007-2008)
Manoel de Souza-Valente - Lirica Translúcida (2010)

Entre outros pseudónimos, há nos seus manuscritos um outro: Manoel Pereira de Gouvêa


Um blogue de Manoel Tavares Rodrigues-Leal e Luís de Barreiros Tavares

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domingo, 3 de julho de 2011


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O Outro Espaço





Uma leitura possível sobre três livros já publicados de Manoel Cardôzo





Quem não acreditar visite a Sierra Tarahumara: numa região em que a rocha tem ar e estrutura de fábula, ver-se-á que a lenda passa a realidade e não pode ali haver realidade alheia àquela fábula.



Antonin Artaud, Os Tarahumaras, Lisb., Rel.D’Água, Trad. Aníbal Fernandes, p.77







como vós vedes. as vãs. veredas do verão.

são breves limiares luminosos. que se diluem. ou.

circulam no corpo. e o vento breve invade-as.

em vão as oscula ou as circunscreve.

em os muros do rumor. vão. do verão antigo nunca olvidado.



Motta Cardôzo

In: A Noção da Inocência





Se declaras que tal forma é Deus, estás a homologá-la, porque ela uma forma de entre as muitas nas quais ele se manifesta (mazhar); mas se dizes que ela é outra coisa, outra que não Deus, estás a interpretá-la, da mesma maneira que se te incumbe a interpretares as formas vistas como em sonho.



Ibn ‘Arabi





1. Se há um hermetismo, ou mesmo um certo barroquismo, na poesia de Cardôzo, esse hermetismo abre para uma dimensão imensa que transborda na sua escrita (1).

Para melhor nos fazermos entender procedamos ao esboço de um possível estudo comparativo. Assim, essa dimensão lembra, embora em contextos e em registos temáticos e psicológicos bem diferentes – talvez até em certos aspectos nos antípodas – o que Henry Corbin chama de «imaginal» ou «mundus imaginalis» (2). Trata-se de uma noção adoptada por este investigador para traduzir o «’alam al-mithâl » desenvolvido pelo poeta sufi de tradição islâmica Ibn Arabi (1165-1240) na linha de um conjunto de autores do sufismo islâmico. Poetas e escritores que se inscrevem nesta tradição são por exemplo: Sohravardî (séc.XII)) ou o jovem Sheik iraniano ‘Ali Ibn Fâzel Mâzandarânî (3).

Mas muito antes do islamismo, o sufismo tem origem na Pérsia com "influências de todas as filosofias e religiões que, durante séculos antes do Islão, ali se confrontavam, tais como o neo-platonismo, o budismo, o cristianismo e o maniqueísmo (Marguerite-Marie Thiollier, Dicionário das Religiões, Trad. João A. Vaz,E.P.S) (3). De modo algum nos consideramos entendidos acerca da literatura mística sufi. Muito longe disso. Limitamo-nos neste estudo simplesmente ao recurso a um ou dois pontos nestas questões que nos parecem pertinentes para a argumentação do que defendemos no que respeita à dimensão imagética da poesia de Cardôzo. Salvaguardando, por assim dizer, qualquer eventual colagem ou sincretismo, e com a consciência dos riscos teóricos que podem incorrer num certo delírio comparativo quando vertentes poéticas e literárias tão díspares como estas são questionadas entre si. No entanto, talvez fosse interessante estudar muita da poesia e literatura ocidentais à luz desta perspectiva que não separa radicalmente o mundo e a vida imaginários do mundo e vida reais. Como se essa separação Ocidental se tratasse de uma salvaguarda ou de um pressuposto racional e racionalizador com vista a não perder uma pretensa lucidez e discernimento. Enfim, para não cair numa espécie de delírio que traduz um fantasma que afinal ainda assombra um certo racionalismo: o fantasma do múthos sobre o lógos. Ora, não é verdade que, no revés, o actual mundo Ocidental entretanto tão tecnologizado foi invadido por imagens, de outro teor (as imagens técnicas, do ecrã, etc), que por seu turno o mergulharam de alguma maneira numa nova confusão, numa nova espécie de delírio entre imagens e realidade? E no entanto, não será que nós, ocidentais, vamos perdendo uma certa capacidade para uma imaginação autónoma tanto a nível colectivo como individual? A nossa imaginação, hoje, parece-nos mais servida pelo que é imposto segundo os meios da técnica e dos media e de um certo cinema. Ao mesmo tempo que um esgotamento das imagens se manifesta paradoxalmente através desta profusão. E já nem os remakes de filmes, e já não são só os dos anos 30, mas também dos anos 80 - tal é a falta de originalidade e imaginação que nos assola - parecem poder salvá-las e salvar-nos. Não será por isso que é posto em causa, segundo vários teóricos, se vivemos actualmente num mundo de imagens? É que o próprio conceito de imagem é hoje uma questão deixada em aberto.

2. Mas voltando a Henry Corbin convém lembrar que foi o primeiro tradutor de Heidegger para língua francesa. Heidegger, que por seu turno fora profundo leitor e estudioso de poetas como Holderlïn, Rilke, etc., bem como dos pensadores pré-socráticos, também eles poetas e físicos (physikoi).
Como dissemos, este estudioso do pensamento esotérico islâmico designou e traduziu o ‘alam al-mithâl de Ibn Arabi com a noção latina de mundus imaginalis. O mundus imaginalis é um mundo que não consiste nos meros planos da imaginação nem do imaginário, tão-pouco do «real». E no entanto ele circula na espiritualidade sufi como uma espécie, diríamos, intermédia e coexistente, embora autónoma, com a imaginação, o plano sensível e o plano inteligível. Ou nas palavras de Corbin, o imaginal situar-se-ia platonicamente «entre a percepção sensível e a percepção inteligível», ganhando porém uma força ontológica que não se encontra neste pensador grego que, como se sabe, foi o primeiro teórico a pôr em causa a questão das imagens poéticas, nomeadamente as dos mitos - com o objectivo de reforçar o advento do lógos já iniciado com os pré-socráticos. Embora, como se sabe, recorra ao múthos já numa outra reformulação.
Corbin fala-nos do Nâ-kojâ-Âbad ou huitième climat (oitava região) mencionados na obra de Sohravardî intitulada L’Archange empourpré: “Je vien de rappeller le mot utopique. Chose étrange, ou exemple décisif, nos auteurs se servent en persan d’un terme qui semble être le calque linguistique: Nâ-kojâ-Âbad, le «pays du Non-où». Et pourtant il s’agit de tout autre chose que d’une utopie (Vj. Corbin, H., Face de Dieu Face de l’Homme, p.9)». Por outro lado, leiamos o que Corbin escreve a propósito de A Ilha Verde Situada no Mar Branco, obra de Mâzandarânî (autor já acima mencionado), ou mais propriamente «Récit des choses étranges et merveilleuses qu’il avait contemplées et vues de se yeux dans L’Île Verte Située dans la Mer Blanche (Op.cit., p.31)»: «Nos voyageurs, eux, abordent à L’Île Verte. Il ya là une une cité située au bord de la mer; sept murailles, pourvues de hautes tours, la protègent de leur enceinte (c’est le plan symbolique par excellence). Il y a lá une végétation luxuriante, d’abondantes rivières. Les édifices sont construits en un marbre diaphane. Les habitants ont tous le visage beau et jeune, et portent de magnifiques vêtements. Notre shaykh iranien sent son cœur s’envoler d’allégresse… (Op.cit,p.33). Partindo deste passo poderemos perceber a força imagética que emana de obras como estas, a par da força cromática e da luz inebriantes. Paralelo que poderemos estabelecer com o mundo poético de Cardôzo, p.ex., no seguinte poema apresentado em epígrafe. Quanto à luz e cor: “como vós vedes. as vãs. veredas do verão./ são breves limiares luminosos. que se diluem. ou./ circulam no corpo…”.» Quanto ao espaço e ao tempo: “… e o vento breve invade-as./ em vão as oscula ou as circunscreve./ em os muros do rumor. vão. do verão antigo nunca olvidado.(N.I.,XXI)” Quanto aos deuses ou a uma estranha realidade veja-se num outro poema: “assim houvera o instante./ e/ quem o movera. imóvel. deus./ e os periclitantes discípulos de uma religião diáfana. ou religiões/ (D.E.IX)”.

3. Eis uma leitura que nos ocorre sobre esta esmeraldina «Ilha verde» de Sohravardî: não será que esta «Ilha verde situada no mar branco» – título só por si belíssimo - é o oásis (e Corbin também faz referência ao oásis, op.cit.) transfigurado num misto de miragem e realidade encontrada, posto que, precisamente, se trata de facto de um encontro com um oásis real que salva da sede e que, contudo, é supra-imaginário uma vez que consuma o imaginário aspirado, transmutando, por sua vez a realidade, e remetendo, por assim dizer, para um outro sentido de real? Quer dizer, transmuta-se o próprio utópico como um real-imaginal.
A Ilha verde seria o oásis com as fontes e riachos enquanto o mar branco seria o deserto de sol transfigurado pelo próprio contraste em relação à frescura do retiro da ilha (oásis) com sua água e luxuriosa vegetação. A miragem e a alucinação enquanto contemplação do próprio oásis real que afinal não é um oásis ilusório.
Dir-se-á: mas toda a poesia que se preza cria imagens. Sem dúvida, mas o que se tenta aqui observar é a capacidade muito própria de transparecer imagens intensas que pelo facto de nos surgirem como se nos fossem imanentes elas já são reais porque nos mostram um mundo a descobrir que virtualmente perpassa o próprio mundo que nos rodeia. Imanência, portanto de superfície e ao mesmo tempo de profundidade, porquanto nos revela que o mundo e o espaço mentais são infinitos tais como o mundo e o espaço que nos rodeiam.

4. Assim, em Cardôzo a força das imagens resulta de uma espécie de atmosfera que o poema transpira. Muito ajudada pela evocação do Verão, associado ao sol, ao calor e a uma certa amplitude espacial.
Por outro lado, será interessante observar que tanto estas obras como a deste poeta português invocam um certo mito da eterna juventude ou da adolescência. Como se se tratasse de um apelo a um qualquer plano que perpassasse as diversas idades e, ao mesmo tempo, fosse um retorno à infância, ou antes, se quisermos, um «devir-criança» (usando palavras de Gilles Deleuze). Criança que, recordada pelo adulto - estádio ao qual ela chegará pela ordem natural das coisas - se cruzaria simbolicamente com ele, porquanto também o adulto à criança retornaria, num qualquer tempo-espaço-mundo imaginários. Do que relevaria por seu turno uma espécie de osmose simbolizadora, através de uma outra espécie de memória, não somente retrospectiva (retorno do adulto à criança), mas também prospectiva (processo da criança para o adulto), como um plano de eterna juventude:

a) O adolescente e o «deus».

b) o efebo.

c) rapaz e rapariga.

d) no corpo pelo corpo cujo sexo não é explicitado no poema.

Seriemos e prestemos mais atenção às alíneas a) e b) uma vez que estas se articulam mais e remetem para analogias com os textos em causa e com o «imaginal». No que respeita a a) citemos primeiro uns passos de «l’Archange empourpré» de Sohravardi belíssimamente ilustrados por Corbin: «Au début du récit que Sohravardî intitule L’Archange empourpré, le captif, qui vient d’échapper à la surveillance de se geôliers, c’est-à-dire de quitter momentanément le monde de l’expérience sensible, se trouve dans le désert en présence d’un être à qui il demande, puisqu’il voit en lui toutes les grâces de l’adolescence: «D’où viens-tu? ô Jouvenceau!» Il reçoit cette réponse: «Comment? je suis l’aîné des enfants du Créateur (en termes gnostiques le Protoktistos, le Premier-Créé) et tu m’appelles jouvenceau?» Là même, dans cette origine, est le mystère de la couleur rouge pourpre que revêt son apparition: celle d’un être de pure Lumière dont la ténèbre du monde créaturel atténue l’éclat en la pourpre du crépuscule. « Je viens d’au-delà de la montagne de Qâf… C’est là que tu fus toi-même à origine, et c’est là que tu retourneras, lorsque tu sera enfin débarassé de tes liens. (Corbin, H., Face de Dieu, Face de L’homme, p.9»; em seguida um passo de Cardôzo: “como se fosse o fogo da adolescência. ainda ardente./ e tão efémero (I.F., 1ª parte, VI).”
b) “ó nudez interdita, como a de um efebo./ como se fosse a primeira. ou. a última vez da vida. (I.F., 1ª parte, VI))”; “que futuro tem a eternidade. hoje e aqui./ corpo ocidentalíssimo./ descoberto e belo. que se ofereceu. efebo efémero./ instante supremo fórmula feliz talvez (D.E.,XII)”.
Depois, seguem-se estas alíneas menos importantes para o presente estudo sem no entanto deixarem de reenviar para a intensidade das imagens poéticas: c) “será um rapaz iníquo./ será uma rapariga obcecada. ambos./ ao sabor do que se pensa (D.E.,IV)”. d) “é então. que o teu corpo esvelto. se revela. e resvala./e a noite./ enorme./freme. aureolada de ouro. sobrevém. (I.F.,V)” ; “de súbito. a manhã navega./ a nudez inóspita. – delapido-a. – quem segrega/ a beleza . antiquíssima. a de um corpo que cala o prazer. e cega./ o ocidente intacto. (…) (N.I., XX).” O tal plano, mais que imaginário e no entanto num certo registo de real: “a infância ainda ecoa. ainda eclode./ tão íntima. tão lúcida./atravessa os dias. como uma seta./ que inflige ternura. (N.I.,V)”.
Por conseguinte, o mundo poético de Cardôzo constitui-se enquanto estrutura onde o real e o imaginário se permutam e transmutam um no outro e, sem desaparecerem, originam uma outra dimensão onde o onírico e o imaginário adquirem tal intensidade que torna possível um certo milagre poético, pois o «imaginal» cardoziano e o mundo «real» coabitam sem o risco do delírio e da loucura enquanto a própria escrita sustentar esta ponte lançada entre um certo real e um outro: “(…) humana face da loucura./ talvez eterna ou divina. talvez breve./ como foi. na verdade.(D.E.,XII)”; “e essas puras deidades./ que irrompiam. e supuravam sexo./ em vez de pura eternidade. corrompida/ como um corpo. abandonado. ermo./ insólito./ o de quem isto escreve. (D.E., XIV)”.

5. Como é possível este estado de coisas? Somente pela forma como se assume a emergência poética e se reconhece ao mesmo tempo que um mero meio-termo no plano da imaginação é ainda uma forma de manter um hibridismo entre o «real» e o fictício ou «fantasia» (Corbin). Quando, pelo contrário, é na assumpção da força imagética que se dá sentido à contrapartida do real que nos rodeia, reavivado e coexistente com o mundo poético sem que, por isso mesmo ambos se excluam: “(…) depois a remota eternidade de um corpo./ ou de uma tarde nua. abomináveis aves. as de/ um verão imperfeito. o mundo./ se o fôr./ mais não é do que frívola eternidade./ a de um instante. ou a de um contorno leve. o da nudez. (…)» (D.E.,I); “ que futuro tem a eternidade. hoje e aqui. corpo ocidentalíssimo. (D.E.,XII)”. Daí que, a título de exemplo, e embora numa perspectiva teofânica (o que não se enquadra na poesia mais carnal, e não-teosófica de Cardôzo) Ibn’Arabi escreva estas linhas no seguimento de uns versos em Traité de L’Amour (Tratado do Amor) : “La première fois que je pénétrai en Syrie, je savourai, par expérience directe, la réalité que je viens d’exprimer et je ressentis un attrait inconnu et tenace pendant un événement (qiçça) divin prolongé qui pris dans mon imagination une forme corporelle.” Prosseguindo com : “En entrant en Syrie, ma raison fut trouble./ Je ne vis d’amoureux comme moi possédés./ De qui suis-je épris? Je ne puis le comprendre./Le Bien-Aimé est-Il Celui qui m’a crée?/Ou bien demeure-t-il fait à ma ressemblance?” (4).
Uma triagem é feita pela própria fusão e cisão entre esses dois mundos através da obra poética. De facto, como já referimos acima, o pensamento Ocidental tem alguma dificuldade em assimilar estes paralelismos.
É neste sentido, e ressalvadas as devidas diferenças contextuais tal como já assinalámos, e convém repeti-lo, que evocamos o «mundus imaginalis» como exemplo comparativo para o que tentamos indicar: ou seja, a força dimensional do espaço onírico e imaginário, ou antes imaginal (recorrendo à expressão de Corbin) que se instala como mundo no poema de Cardôzo.
É no jogo leitor-texto-escritor, dessa escrita que suspende e se suspende, que se abre aquela dimensionalidade, onde a letra e a palavra – inscrição – entram nesse espaço-tempo e o abrem, inaugurando um fora ou um «de-fora» (nas palavras de Maurice Blanchot) (5). Letra e palavra, ajudadas pela pontuação percutida, entram e abrem dando a volta ao sentido convencional do dentro/fora. E por isso se constitui um mundo: “(…) assim. se iniciara/ o suicídio colectivo. das/ pombas. que habitavam o bairro antigo. e não só./ também o templo erigido aos deuses. aqui perto. como se fosse densa floresta de eternidade. ignoro/ porém o futuro puro dos instantes. flutuantes. ou extáticos (D.E.,X)”.

6. O poema parece por vezes querer sobreviver numa relação umbilical a si mesmo. Numa dobra, num barroquismo que chega a ser nostálgico e melancólico. Digamos que se pode entrever até um certo solipsismo poético numa contorção narcísica que transparece alguma mágoa do próprio homem e do poeta (6).
Todavia, é precisamente essa condensação escrita, essa obsessividade, que faz eclodir o significante numa dimensão de mundo: “esculpe-se a palavra. forma-se o poema. (I.F.,1ª parte,XIV)”. Sem que se perca o labor da letra e da palavra enquanto tais.
A luz, nocturna ou diurna que, por um lado, se adivinha no espaço aberto pelo poema, e, por outro, no tempo “antiquíssimo” que se estende numa espécie de presente onde o efémero e o eterno se cruzam, vem, retroactivamente, dar sentido à construção sintáxica e rítmica da pontuação e da linguagem que por seu turno a tornam (essa luz) manifesta: “aflora-se o cerne solene do dia. oh ofício diáfano. tão efémero./tão fugidio./que nem errância. ou sussuro consente.// é então. que o teu corpo esvelto. se revela. e resvala./ e a noite./ enorme./ freme. aureolada de ouro./ sobrevém (I.F.,2ª parte, V).”; “a tarde. intrusa. impregna./ inunda./ a casa mansa./ como um corpo lindo./ que frima o corpo fugaz.// a íngreme noite. demora. depois./ desagua (…) (I.F., 1ª parte, I).”
Pouco ou nada falámos aqui da celebração do corpo, tema tão caro a Cardôzo. E até de um certo tom profano que transpira a sua poesia. Não faz parte do propósito deste estudo. Deixaremos o resto, que é muito, à curiosidade do leitor.



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Notas:

(1) Os livros intitulam-se A Duração da Eternidade, A Imperfeição da Felicidade e A Noção da Inocência, de edição de autor, constando um exemplar de cada na Biblioteca Nacional, e, entre outras referências, uma recensão por Elsa Rodrigues dos Santos, no site de recensões da Sociedade de Língua Portuguesa (www.slp.pt). Doravante os mesmos serão indicados nas citações deste estudo com as respectivas siglas: «D.E.», «I.F.» e «N.I.» acompanhadas da numeração dos poemas ou de uma outra nota caso seja necessário.

(2) Nomeadamente, entre outras: Henry Corbin, L’Imagination Créatrice dans le Soufisme D’Ibn Arabi, Paris, Aubier; ou ainda, o livro do mesmo autor: Face de Dieu, Face de L’Homme, Paris, Flammarion.

(3) No entanto há fortes dissidências do sufistas e fatimidas relativamente ao Islão tradicional. Sobre várias vias, práticas e técnicas corporais de libertação espiritual alheias ao islamismo ortodoxo -religião de submissão: muslim, islam - leia-se o capítulo 7 do excelente livro de Moisés Espírito Santo (Os mouros fatimidas e as aparições de fátima, Lisboa, Ed. Instituto de sociologia e etnologia das religiões, UNL, 2000). Embora também houvessem discordâncias entre vertentes sufistas, nomeadamente Ibn Arabi e Ibn Thumart, vendo-se assim a complexidade destas questões e as pontes com o Corão (Op. Cit., p.247).

(4) Ibn ‘Arabi, Traité de L’Amour, Trad. Maurice Gloton, Paris, Albin Michel, Col. Spritualités Vivantes, p.52.

(5) Cf. p.ex., Blanchot, M., L’Espace Littéraire. Seria interessante elaborar um estudo sobre o poema de Cardôzo a partir do que Blanchot reflectiu sobre o espaço literário. Portanto, já num contexto da literatura europeia e, digamos, menos heterodoxo do que o presente estudo. Talvez fique para outra oportunidade. Leia-se a este propósito o que Blanchot escreve numa passagem sobre Mallarmé: «L’espace poétique, source et «resultat» du langage, n’est jamais à la manière d’une chose; mais toujours, il s’espace et se dissemine» (Blanchot, Le Livre á Venir, Paris, Folio, 1990, p.320).

(6) Por exemplo, é notório por vezes um cunho trágico em Cardôzo; além disso ele remete para o corpo e para a carne com uma possível sublimação destes através do verbo. Se bem que, por outro lado, não deixe de haver em Cardôzo um reenvio para uma espécie de celebração do corpo através da inscrição física que constitui a própria escrita. Por outras palavras, qualquer coisa como uma degustação (índice oral) erótica da palavra mediante o acto de escrever (índice escrito) numa interessante osmose entre escrita e fala. Ao passo que o mundo imaginal da tradição Sufi reenvia pela própria palavra para a coalescência entre a dimensão espiritual e a «imaginação criadora» (imagination créatrice). Enfim, diferenças, que as há e muitas, entre estes autores e Cardôzo, o qual se inscreve indiscutivelmente na atmosfera da poesia de tradição europeia. Mas o propósito deste estudo, tal como já foi dito, é outro.



18/09/09

Luís de Barreiros Tavares

Com leves acrescentos (três ou quatro linhas e uma nota de roda-pé) relativamente à versão publicada no site da SLP. Também foram alteradas as referências dos nomes: em vez de "Motta Cardôzo", "Manoel Cardôzo".
Pela minha parte, assino "Luís de Barreiros Tavares" em vez de "Luís Tavares".

Texto publicado no site da Sociedade da Língua Portuguesa (SLP).




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quarta-feira, 27 de abril de 2011



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suspensa teia do tempo
se tece no interior do pensamento
e se se pensa o curso do tempo
(sua luta latente) mais se ateia
o fogo do pensamento
e se consome o som do tempo



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C.P.
20-7-71

Desenho: retrato de Manoel Tavares Rodrigues-Leal. Com um casual efeito digital.
Por Luís de Barreiros Tavares (1988)

domingo, 3 de abril de 2011

Dois textos de Elsa Rodrigues dos Santos sobre poemas de Manoel Tavares Rodrigues-Leal

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Dois textos de Elsa Rodrigues dos Santos sobre poemas de Manoel Tavares Rodrigues-Leal com o pseudónimo: "Manoel Ferreyra da Motta Cardôzo."

1º texto

Sobre A Noção da Inocência



Do seu primeiro livro, A Duração da Eternidade, eu dizia: «Numa escrita indócil, viril, entre o cunho clássico pela virtude da cultura, da qualidade e da sabedoria e da marca do modernismo na criatividade de uma nova gramática, Motta Cardôzo oculta as cicatrizes e os dias felizes, na convicção da palavra poética.»
E terminava: «Assim o acreditamos, pela publicação deste seu primeiro livro de poesia, belo nas suas metáforas e representações, que desejamos não ser um acto isolado e efémero, mas retomando em outros Outonos suaves e marcantes, enriquecendo as belas letras portuguesas».
Com a Noção da Inocência confirmamos a qualidade da escrita poética, projectada não só neste terceiro livro, como num quarto já muito próximo de nos chegar às mãos.
E se no primeiro livro o Poeta se confrontava com o ofício da escrita, como um acto de alegria e de dor, e ainda como o binómio eternidade/efemeridade, neste segundo livro, o sujeito poético remonta à idade da inocência, à beleza quase perfeita dos corpos e à descoberta do amor.

a infância ainda ecoa. ainda eclode.
tão íntima. tão lúcida.
atravessa os dias. como uma seta.
que inflige ternura.

X

a exuberância crucial do desejo. ocorre. essa desmesura.
essa distância dos corpos. e das colinas. e sua errância. e efémera.
irrestrita. mas triste. como descrevê-las. velas e loucura.
e toda a adolescência. magoada. que não deslumbra.
mas ainda navega. navio esvelto. que não foge do fogo.
nem exorbita da penumbra.

A idade da inocência cumpre-se como um tempo de expectativa, de curiosidade, como um fruto ainda verde, mas promissor de um outro tempo em que Eros e Apolo se unem, insinuando uma maturidade sensual.

acordo para o verão. vulnerável.
inaudível.
que cai como uma benção. ou um anátema.
acordo para o teu corpo. que é um corcel. ágil e alegre.
moreno. como a rosa da tarde. que declina. e se rasga. cruel.
e que. de um prazer íngreme. se alague.

O sujeito poético transporta, porém, o germe da dúvida, da perenidade do amor, da dor que o fim implica e di-lo nos versos:

ah ter eu a leveza de haste.
de uma primavera remota. por que tu te enfeitiçaste.
a noção. incólume. do meu íntimo desastre.

Confrontam-se agora dois tempos: presente/ passado transfigurados em realidade/ memória, em que nos dias longínquos da juventude os corpos eram belos, o amor, emoção e prazer. No presente, a vida flui para um destino irremediável, rio sem regresso.

jamais teu corpo florirá. como outrora
floriu. jamais jorrará a seiva ardente.
que jorrava. nos dias auspiciosos e felizes

agora teu corpo cumpre o seu destino. inexorável
(...)
e inocente. que é a morte. perene. obscena. irrespirável.

Visão pessimista e dolorosa só colmatada pela recordação da mãe, da casa, porto seguro, sem enganos e sem traições, ultrapassando a efemeridade da vida e o «olvido vil da morte»

a infância perfaz-se em ti. ó
mãe mansa.
ó casa. ilesa.
onde vivi. e o ouro do gesto floria.
sem engano.
sem a dubiez das
noites.
e o gesto floria. exacto.
e nunca mais se extinguiria.
ó mãe. mansa e imensa.
cujo rosto jamais se apartará de mim. e que eu ainda vislumbro
rosto incólume. que eu sempre invocarei.
contra o olvido vil da morte.

Reiterando por outras palavras o que disse anteriormente, a poesia de Motta Cardôzo é trabalhada no ouro da palavra, numa escrita adulta e de qualidade, em que o erotismo do gesto se configura em imagens de uma elevada beleza e finura como só um poeta maduro e realizado o pode fazer. Por isso, é urgente que a sua poesia seja enquadrada na nossa melhor literatura.


Elsa Rodrigues dos Santos


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2º texto


Este texto da autoria de Elsa Rodrigues dos Santos foi lido numa emissão radiofónica do programa Fantástica Aventura da RDP Internacional, coordenado por Teresa Morgado . É agora registado em video. Foi publicado no boletim literário da SLP.
A Doutora Elsa Rodrigues dos Santos foi professora do Ensino Secundário, no Instituto de Ciências Educativas e na Universidade Lusófona.
Tem-se dedicado ao estudo da literatura portuguesa e das literaturas africanas de língua portuguesa.
É Presidente da Sociedade da Língua Portuguesa (SLP).








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Três epígrafes, duas de Rimbaud e uma de Ricardo Reis abrem o livro sob o signo da descrença da vida e da existência de liberdade.
«Merde à Dieu» diz Rimbaud, «Porque só na ilusão da liberdade, a liberdade existe…» acentua Ricardo Reis numa das suas Odes. Assim, logo à partida as epígrafes apontam-nos para uma poesia com um certo cepticismo e mágoa.
O primeiro poema é uma reflexão sobre o ofício da escrita e o autor fala-nos de «loucura», de «uma frustre maré interior», «o inexorável rigor» e «depois a remota eternidade de um corpo».
Jogando com o conceito de «literatura», que é ofício eterno, mas também «leitura e ócio», o poeta termina ironicamente rimando com a palavra «literadura», porque a escrita, se é algo de eterno, implica também sofrimento.
No poema II, o poeta, na sequência do primeiro, afirma. «e não dura o dom». Confronta-se, então, o sentido de eternidade com o de efemeridade, isto é, eternidade, na qual o poeta acredita e efemeridade que constata. E aí reside a dor do sujeito poético, entre o prazer fugidio das palavras e o projecto de escrita para a eternidade que se confundem com o vazio dos dias entre «a vã cobiça de um corpo», «prazer efémero», o desejo de amor e «a morte suprema» desse mesmo amor, dessa mesma vida.
Fica apenas a ilusão de que a sua escrita permanecerá eternamente ( «luar de letras consentidas» (…) «assim as guardo. cioso» «até à circulação da eternidade. Suponho eu.»)
No poema III, o «eu» surge em forma de Outono que «vem todos os anos. outonos suaves. como a mãe gostava. eternos e não duram muito.»
«Outono», não apenas como símbolo do declinar das estações e da existência, mas como algo de doce, de sensual, de recordação de um amor que «morreu há muito e é eterno e outono talvez.» Eterno porque volta sempre, ainda que passageiro.
Institui-se com persistência o binómio eternidade/efemeridade na escrita e sobretudo no amor porque «até a eternidade morre vilmente» (V).
«Cristo morreu como se fosse eterno/ como se fosse manso rio de um continente desconhecido» (VI).
Eros e Tanatos se degladiam entre o ser e o estar, entre a essência e a vivência.
Erotismo e vida, erotismo e morte (oh vã comédia da vida) fundem-se na alma do poeta através da arte das palavras.
Numa escrita indócil, viril, entre o cunho clássico pela virtude da cultura, da qualidade e da sabedoria e a marca do modernismo na criatividade de uma nova gramática, Motta Cardôzo oculta as cicatrizes e os dias felizes, na convicção da posteridade da palavra poética.
Assim o acreditamos, pela publicação deste seu primeiro livro de poesia, belo nas suas metáforas e representações, que desejamos não ser um acto isolado e efémero, mas retornando em outros Outonos suaves e marcantes, enriquecendo as belas letras portuguesas.

Elsa Rodrigues dos Santos

Este texto encontra-se publicado no site de recensões da Sociedade da Língua Portuguesa (SLP)



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Registado em 2/4/2011

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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011



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não fumes meu amor. porque

podes morrer. todo um regaço de coisas ou ruínas.

ou ruídos. os de outrora.

uma face luzidia. e o respectivo antídoto.

tudo isso escrevi sem parábolas. que cristo contava. e os

discípulos do corvo

curvavam-se à vã sapiência. esgotava-se a

paciência. punido. banido.

puerilmente. parece-me que cristo morreu.

como se fosse eterno.

como se fosse manso rio de um continente

desconhcido.

que supurasse sexo. a pele luzidia.

ou como se agonizasse na praia efémera

dos dias. que

passavam rentes aos testículos.

e o respectivo antídoto.


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Lxª 18.07.2003
A Duração da Eternidade
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http://slp.pt/Variavel/Manoel.html

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